20.10.09

R. A., Poeta e tradutor "porteño" por José Augusto Seabra

RODOLFO ALONSO,
POETA E TRADUTOR “PORTEÑO”

por José Augusto Seabra



Na geração poética da Argentina de meados do século que agora acaba de passar, agrupada à volta da célebre revista de vanguarda Poesía Buenos Aires, uma voz sobressaiu: a do seu membro mais jovem, Rodolfo Alonso, cuja entrega total à missão de poeta e tradutor de poetas de múltiplas línguas o singularizou e universalizou durante os seus cinquenta anos de vida literária, que este ano se cumprem. De genealogia galega, da qual se reclama com fidelidade, este “porteño” nascido em 1934, que fala correntemente o seu idioma originário e o português, dedicou um especial carinho à nossa poesia, bem como à da Galiza e à do Brasil, ao lado da atenção à de outras línguas europeias (espanhola, francesa, italiana, inglesa, alemã). Ele orgulha-se, sobretudo, de ter sido o primeiro tradutor de Fernando Pessoa, em 1961, antes mesmo de Octavio Paz o dar a conhecer no México. E verteu para espahol outros dos nossos poetas modernos e contemporâneos, como Mário de Sá-Carneiro, Adolfo Casais Monteiro, Sophia de Mello Breyner, Carlos de Oliveira, Egito Gonçalves, Mario Cesariny, António Ramos Rosa e Herberto Helder, sendo um estudioso da nossa literatura e um conhecedor exímio das suas linguagens. Ensaista penetrante, que faz jus ao título de um dos seus livros de crítica, Poesía: lengua viva (1982), Rodolfo Alonso foi sempre um comentador empenhado da actualidade literária, cultural e até política não só do seu país e das Américas mas da Europa e do largo mundo, sendo a sua “palavra insáciavel” antes de mais a da “defesa da poesia” -títulos significativos de livros seus-, mas também a da “liberdade livre” que ela supõe, como a proclamou Rimbaud, a quem foi comparado pelos seus companheiros de geração.

Por tudo isto, é tempo de entre nós darmos a conhecer melhor até por gratidão e justiça, a obra de Rodolfo Alonso, que a pesar de ter alguns poemas traduzidos para português por Egito Gonçalves e de António Ramos Rosa lhe haver consagrado um luminoso ensaio, publicado como prefácio a Música concreta (1), continua no limbo de alguns iniciados, quando merece uma irradiação à medida do seu fulgor e do seu rigor poéticos, reconhecidos alhures. Com efeito, como dele escreveu o crítico belga Fernand Verhesen, “há poucas linguagens, sobretudo na América hispânica, que sejam de tão escrupulosa precisão” (2). Seguir o longo percurso deste poeta que se manteve, a pesar da sua criação prolifica, algo discreto e em surdina, é de facto uma descoberta permanente, a que agora, num contacto mais íntimo, nos rendemos com a fascinação de um encontro imprevisto, que se renova ao frequentar cada poema, lido e relido, como se fora pela vez primeira.

Logo a partir do seu livro de estreia, Salud o nada (1954), a poesia de Rodolfo Alonso se dá como uma epifania, no hic et nunc da presença ao mundo, compartilhada pelo poeta e pelo leitor:

“hoje estamos aquí contemos em nós o mundo
rebeldes à morte à ressurreição à palavra”,

assim começa o poema “Terra redonda”, em que se exaltam

“nossas mãos que cantam a noite vertical
o sol por tanto tempo iluminado
a alegria ascendente” (3).

É a “casa do ser”, parafraseando Heidegger, várias vezes citado nos seus ensaios por Rodolfo Alonso, que o poeta quer construir e habitar, de poema em poema. Ele concebe e realiza a poesia como “um exercício de vida e de linguagem”, que se corporiza na

“alegria de estar aquí existindo” (4).

Desse milagre existencial, que é o da “palavra no tempo”, de que falava Antonio Machado, um dos poetas mais amados de Rodolfo Alonso, emana um outro mundo, o qual, como observou António Ramos Rosa, sendo o do poema, nao é pré-existente mas coexistente com este, “uma vez que o poema surge como realidade fundador de um sentido não pré-determinado” (5). Tal como se lê no seu livro subsequente, Buenos vientos (1956), o poeta, “tendo admirado o mundo”, pode agora dizer:

“hoje avanças decidido para o teu próprio domínio” (6),

sabendo, como ao evocar intertextualmente Dante disso mostra ter consciência Rodolfo Alonso, que

“No meio do caminho, a verdade já vai ficando para tras” (7).

Qual Orfeu, o poeta há-de avançar cantando, para salvar quem ama, renascendo da noite infernal (“na alvorada / cantam as mãos / do meu amor”), mas a cada passo tem a tentação, como dizia Barthes, de suspender a marcha e de voltar-se um pouco, num olhar furtivo, a iluminar-se na iminência da palavra poética:

“À beira de dizer, como um qualquer,
para que fique testemuho,
um olhar obriga a deter-se,
em seco,
uma palabra arde.” (8)

É esta palavra ardente que na sua caminhada demanda insaciavelmente Rodolfo Alonso, pois só ela

“abrasa

aquece o coração
do mundo” (9).

Para o poeta de Hago el amor (1969) -livro a que Carlos Drummond de Andrade dedicou um belo prefácio-, são as palavras que, enlaçando-se, deflagram o fogo do amor em acto:

“Estas palavras que ouso
convencido inseguro
desesperado tímido
contando com os outros

Estas palavras que uso
abusando paciências
como quem canta só
para romper o fogo

Estas palavras que amam” (10).

Entregando-se por inteiro, embora “inseguro”, ao amor das palavras, Rodolfo Alonso tem a lucidez do poeta que, desejando “falar claro” (Hablar claro é outro titulo sintomático de uma sua colectânea de poemas, de 1964), sente sempre a “carência” e ao mesmo tempo a potencialidade infinita de sentidos da linguagem: “As palavras, dei por mim uma vez a dizer, são aproximativas” -escreve ele, explicitando o duplo significado da expressão: nunca elas poderão significar tudo, imprecisas como são, mas servem assim mesmo para aproximar os homens (11).

Dessa ambiguidade intrínseca da linguagem vive a palabra poética. No vaivém entre a aridez e a plenitude se move a sua errância, como se só pudesse reverberar, abrasadora, nas areias desérticas, sem saber jamais se estas têm um fim. Eis porque o poeta se interroga, num poema com o título -uma vez mais dantesco- de “Inferno”:

“A palavra atravessa o deserto e encontra o seu destino?
Ou vem e vai, errante, vestida de si mesma, impotente,
/impossível?” (12).

A contradição inscreve-se, trágica, no âmago desta poesia, que é feita de uma questionação ontológica constante dos opostos, potencializando-se e actualizando-se, reversivelmente, numa coincidentia oppositorum, como no poema dedicado, certeiramente, a Ludwig Wittgenstein:

“Que
poderia

ser
não ser?“ (13).

Não admira que, na sua concentração expressiva, seja a figura do oxímoro que, com maior nitidez, numa cintilação fulgurante, irrompe na poesia de Rodolfo Alonso, qual o cometa que o poeta iconicamente vislumbra, numa vidência profética:

“Cego de luz
vê lumes
nos bebedouros
do futuro” (14).

Numa obra cheia de ressonâncias de um meio século de história, em que ecoam os momentos eufóricos e disfóricos de um tempo de guerras, revoluções e contra-revoluções, totalitarismos de sinal contrário, no seu país e no mundo inteiro, é a luz da liberdade que de poema para poema de Rodolfo Alonso brilha nas trevas, como o “céu de Buenos Aires” deste grande poeta “porteño”.



1. Rodolfo Alonso, Música concreta, pref. de António Ramos Rosa
(“Rodolfo Alonso, poeta de la desnudez esencial”), Buenos Aires, 1994.
2. “Hablar claro” con Rodolfo Alonso, pref. a 70 Poemas de 35 Años, Buenos Aires, 1993.
3. Rodolfo Alonso, 70 Poemas de 35 Años, ed. cit., p. 12.
4. Idem, p. 13.
5. “Rodolfo Alonso, poeta de la desnudez esencial”, pref. cit., p. 9.
6. 70 Poemas de 35 Años, op. cit., p. 16.
7. Idem, p. 17.
8. Idem, p. 36.
9. Idem, p. 27.
10. Idem, p. 69.
11. Rodolfo Alonso, “Las palabras son aproximativas”, in Defensa de la Poesía, Buenos Aires, 1997.
12. 70 Poemas de 35 Años, ed. cit., p. 56.
13. Música concreta, ed. cit., p. 62.
14. 70 Poemas de 35 Años, ed. cit., p. 70
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